Lula e a mãe

Em um de seus inflamados comícios de campanha, o presidente Lula declarou, ao lado de sua candidata, que “governar qualquer um governa; o que o Brasil precisa é de alguém que cuide dele, de uma mãe”. A primeira parte do raciocínio mal esconde um modo curioso de, discretamente, desfazer de sua candidata, já que, para governar, qualquer um serve – por que não ela? Mas a segunda parte revela, atrás do pitoresco típico de sua linguagem, de forte apelo popular, uma representação cativante do poder que re­­monta às raízes do Brasil. Em outras palavras, a ideia de que o Estado é um prolongamento da família, uma imagem aliás recorrente nas me­­táforas de Lula. Sim, uma imagem com sabor de povo, mas exa­­ta­­mente o mesmo conceito se encontra na clássica frase do elitista Ruy Barbosa, uma figura ornamental da cultura brasileira que pode ser acusado de tudo, exceto de iletrado: “A pátria é a família ampliada”.
A pátria tem muitas formas e vestimentas, até a célebre “pátria de chuteiras” na expressão de Nelson Rodrigues. Mas a reincidência histórica de sua identificação com os valores da família não é apenas pitoresca; é, de fato, uma ideologia de Estado que vamos encontrar tanto nas barbas paternais de dom Pedro II, que tinha um “grande carinho” pelos escravos, até o “pai dos pobres” do século 20, Getúlio Vargas. A disseminação de ditaduras em meados do último século – Stalin, Franco, Hitler, Mussolini, Getúlio, Perón, a lista é imensa – reforçou-se sempre na imagem do “pai da nação”, aquele senhor sábio que, na cabeceira da mesa, pela autoridade paterna indiscutível, leva a família pelo bom caminho. Não se discute à mesa, nem se ergue a voz contra o pai. Quando o presidente choraminga que a imprensa o destrata, ele dá voz a uma nostalgia atávica do “pátrio poder” contra os “filhos ingratos”. Quando o pai decide, não se discute – ele sempre quer “o melhor” para nós.
Ocorre que o Estado moderno só passou a existir quando destruiu o seu pressuposto familiar; o Estado, hoje, tem de ser o contrário do que é a família. Não pode jamais ser regido por laços de sangue, parentesco, hierarquia familiar, proteção de clãs, privilégios de berço, direito à herança. O Estado tem de ser a regulação abstrata de leis, o que pressupõe, necessariamente, a autonomia adulta de indivíduos, não a tutelagem familiar. Quem precisa de pai e mãe é criança; o cidadão precisa de presidente e de governo, ambos renováveis periodicamente (ao contrário das famílias, que são eternas). O mundo civilizado aprendeu a duras penas essa diferença. Imagine-se um candidato alemão, francês, americano ou sueco dizendo aos eleitores que eles “precisam de uma mãe” e veja-se o resultado nas urnas. Seria um bom modo de descobrir o grau de maturidade política de um país.
Publicado em 17/08/2010 - Cristovão Tezza

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