Semiautoritarismo maquiado

 A democracia nunca predominou no mundo nem induziu entusiasmo popular semelhante ao induzido por líderes carismáticos e messiânicos – no século 20 ocidental, de Hitler e Mussolini, na Europa, a Vargas, Perón e Chávez, na América do Sul. Em algumas regiões jamais existiu e é improvável que possa existir – situação refletida na resposta de cientista político russo, perguntado se Putin era democrático: “Para a Rússia é.” Insere-se aí a ilusória pretensão de fazer do Iraque e do Afeganistão democracias que requerem as circunstâncias ocidentais, não transplantadas pela vitória militar.
Nos anos 1900 dezenas de milhões de europeus viram no fascismo e no comunismo totalitários opções melhores que a democracia, menos de 50% da população mundial vive hoje sob regime democrático e não se espera melhora significativa no futuro breve. Ao contrário: depois do avanço da democracia social de massa no século 20, a democracia vive hoje restrições em suas combinações de liberdade civil, mercado e interveniência estatal e corre o risco de retrocesso, já transparente em países, inclusive da América Latina, onde a eleição do chefe do Executivo, ungido à liderança redentorista rotulada de democracia, é pretendida como respaldo legítimo ao detrimento das demais instituições.
No Brasil, as razões que perturbaram a democracia no nosso passado ainda não estão satisfatoriamente superadas e algumas vêm sendo até intensificadas. Particularmente grave hoje: o descrédito das instituições representativas pluralísticas e dos agentes políticos que, pautados pela cultura patrimonial-clientelista, confundem o exercício legal com lassidão na posse do poder. Descrédito que está levando o mundo político a ser visto como defensor da reeleição e da continuidade no usufruto do poder acima dos interesses nacionais que possam prejudicá-las – precedência transparente, por exemplo, na derrubada do fator previdenciário no Congresso Nacional.
Apesar da tendência global (muito, latino-americana…) e da preocupante conjuntura brasileira, nossa normalidade processual democrática não está ameaçada, intervenções à século 20 são implausíveis hoje. Mas essa implausibilidade tem limites e nossa fragilidade política abre espaço, se não ao trauma, ao menos a medidas não exatamente na ortodoxia democrática, ao semiautoritarismo maquiado de democracia, que, sem agredi-la ostensiva e radicalmente, mutila a concepção da democracia pluralista e representativa. E não será o caso de atribuir eventuais atribulações à interferência estrangeira: os interesses multinacionais preferem tranquilidade política e segurança jurídica, para investir e lucrar. Tampouco aos militares, que, ao contrário, desejam a consolidação do regime democrático, desejam que os políticos aprimorem a democracia e lhes assegurem espaço funcional para suas finalidades precípuas.
A responsabilidade caberá à combinação de nossas mazelas políticas (em evidência porque da política depende a correção de tudo) com as socioculturais, à combinação da fragilidade de dois requisitos da democracia – povo educado e em segurança socioeconômica, para exercer seus direitos imune ao fascínio populista ilusório, e atores políticos capazes e éticos – com a cultura sebastianista herdada do absolutismo português e estimulada por ideias do positivismo, fascismo e socialismo. Combinação em que o Estado é visto como a solução de todos os problemas e a fonte de benesses de toda ordem.
O Brasil desejável e possível exige bons alicerces políticos, e – ao contrário do regime de Franco, que, superado o trauma da guerra civil, facilitou a formação de quadros para a democracia que inexoravelmente o seguiria na Espanha – nosso regime de 1964 não foi feliz nesse campo. A insuficiente emersão da política de qualidade acabou desembocando na política medíocre, permeada pelo populismo por vezes proxeneta irresponsável em temas nacionais (previdência, por exemplo) e irrealista em internacionais, pelo arrivismo que transforma a política, de sacerdócio cívico, em meio de vida patrimonialista, caracterizado pelo cultivo do usufruto do poder.
O clima de avanço econômico que estamos vivendo e alguns aspectos efetivamente positivos (nem todos são) do assistencialismo ajudam a mistificar os riscos da situação política. Entretanto, mais dia, menos dia, a deterioração da prodigalidade mágica (?) do BNDES, a exaustão do modelo macunaíma da cidadania “subprime”, em que crédito e endividamento são vistos como aumento da renda, a violência e a criminalidade, a má qualidade da educação e da saúde, o descalabro infraestrutural e outros problemas de magnitude similar vão fragilizar a euforia. Em coerência com o DNA sociopolítico latino-americano, a consequência será a atração por soluções salvacionistas, em geral com nuanças “menos democráticas”. A mais provável hoje: o populismo semiautoritário amparado no número emocional, que não é garantia de acerto (Sócrates foi condenado por maioria, Barrabás foi preferido a Jesus e o apoio do povo alemão permitia que Hitler se dissesse democrático), e na cooptação do capital, via benesses e obras públicas do Estado, e do trabalho, via sindicalismo oportunista.
É da natureza intrínseca dessas soluções que os conluios “fisiológicos”, descomprometidos com a ética e o rigor do direito, facilitem a formulação da estrutura legal que confere ao poder redentorista o respaldo da tintura de legitimidade democrática para práticas semiautoritárias – para o cerceamento da liberdade de expressão e de outras liberdades civis, para restrições a direitos, como o de propriedade. Facilitem, enfim, a estruturação legal do governo forte de perfil semiautoritário, diferente do Estado democrático forte como deve ser. Há que estar atento a essa hipótese, de que é exemplo relevante hoje a Venezuela, vista com simpatia mimética por segmentos políticos brasileiros!
Fonte: Jornal “O Estado de S. Paulo” – 17/08/10

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